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Shame, Um filme-que-nomeia
Shame | Steve McQueen | 2011
Sérgio Laia

Escola Brasileira de Psicanálise y Universidad FUMEC



Quando saí do cinema, por ocasião da primeira vez que vi Shame, filme dirigido pelo diretor inglês Steve McQueen, fui tomado por uma estranheza. Não conseguia dizer que havia gostado ou que era um bom filme, tampouco podia afirmar que não havia gostado, nem que ele era ruim. Sem dúvida, a extensa sequência em que Carey Mulligan canta “New York, New York” sempre me pareceu maravilhosa, mas um filme não se reduz a uma sequência, por mais extensa que ela seja...

Volta e meia, me pegava pensando no filme até que, no dia seguinte em que o assisti pela primeira vez, pude concluir sobre o quanto ele é excelente. Sua montagem entrecortada, tomada tanto pela lentidão quanto pela precipitação e, ao mesmo tempo, por uma precaridade de dados, digamos, biográficos, do protagonista Brandon, muito bem interpretado por Michael Fassbender, me pareceu evocar o mesmo ritmo e a mesma aridez com que muitos se apresentam, hoje, em nossos consultórios – há um sofrimento, inclusive intenso, como também uma dificuldade, não menos extrema, para “se livrar” do que acaba se impondo como um “mal” ao qual se está conectado, mas não há, pelo menos de início, uma história, um relato sobre como aquilo surgiu, uma contextualização minimamente subjetivada de como o corpo passou a ser tomado por aquilo que o enreda.

Assim, o filme Shame, ao nos apresentar um homem às voltas com uma compulsão sexual que, por perturbar-lhe intensamente a vida, permite a Steve McQueen chamá-la de sex adiction, não é pura e simplesmente um filme sobre o que, na clínica lacaniana, temos chamado de “novos sintomas”: ele mostra como funciona uma forma de apresentação de sintomas muito frequente nos nossos dias e, além disso, ao se intitular Shame (Vergonha), inclusive pelo modo ao mesmo tempo sutil e incisivo como seu diretor utiliza dessa palavra, tal filme apresenta-nos uma estratégia que não me pareceu distante daquela que nós, fazendo valer a orientação lacaniana, procuramos imprimir diante de casos e situações similares.

Essa minha conclusão sobre Shame me pareceu ser um dos motivos que levou Ram Mandil, como Editor da revista Correio, a me convidar para escrever esta resenha. Para atender a esse convite, vi o filme uma segunda vez, em DVD, o que me possibilitou fazer outros achados.

Enquadramentos – o que se imiscui, o que escapa e alguns escritos

É notável o modo como Steve McQueen utiliza a câmera para realizar Shame. Há muitos closes, sobretudo dos corpos, mas os enquadramentos jamais os apresenta explicita e inteiramente, inclusive nas cenas em que, pela adição sexual de Brandon, os contatos entre os corpos tenderiam a convocar uma explicitação maior. Assim, ele nos apresenta o quanto Brandon é tomado por um modo de satisfação, um gozo que, embora imiscuído em seu corpo, acaba sempre lhe escapando e o obriga a tentar, de novo, sempre de forma ao mesmo tempo incessante e vã. Logo, tal protagonista busca, como um caçador contemporâneo, a satisfação sexual, quer circunscrevê-la a seu corpo, mas, como no antigo apólogo de Aquiles e a tartaruga, jamais consegue alcançá-la e, nesse percurso infernal, resta sempre só com seu corpo. Só no sentido de solitário e também no sentido de que não lhe sobra nada além do que o corpo. Nesse contexto, é relevante citar uma breve observação de Steve McQueen sobre esse personagem, proferida por ocasião de uma entrevista à edição de fevereiro de 2012 de Dazed & confused e que também nos indica o quanto Shame pode nos ser útil para a preparação do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, dedicado à desordem no real provocada pela junções do capitalismo com a ciência (Miller, 2012). Brandon “está em um meio de capitalismo e liberdade, usando seu corpo para ecoar isso, mas o que ele está fazendo é criar sua própria prisão”(Woo, 2012).

O aprisionamento de Brandon é também especialmente captado pela câmara de Steve McQueen quando ela enquadra esse protagonista no apartamento, sobretudo nas cenas iniciais, mas também naquelas vividas com Sissy, sua irmã (não menos aprisionada) e ainda nas suas idas-e-vindas de metrô. No apartamento, é certo que o imóvel, clean e elegantemente decorado, é pequeno, mas o corpo de Brandon, não apenas pela dimensão do lugar onde mora, é muitas vezes enquadrado de modo entrecortado pelas paredes, pelos objetos, de forma que ele nos é apresentado sempre como literalmente entre-visto. Dentro do metrô, vemos muito mais seu rosto em close, mas há sempre um pedaço de cartaz, um vidro ou uma parede com pichações que são também, com suas letras, recortados junto a essa face – há algo escrito que se interpõe ao corpo, dando-se a ler ou não e que, sem dúvida, tende a passar despercebido pela ênfase que o close dá ao rosto ou a alguma cena de sedução.

No contexto desses escritos entrecortados, não posso dizer que foi proposital, mas me pareceu curioso que, em uma das cenas iniciais no metrô, quando ainda estamos sendo introduzidos à prisão do modo de gozo de Brandon, a câmara focada em seu rosto acaba por enquadrar também parte dos dizeres de um cartaz, prenunciando o que poderemos perguntar ao longo de todo o filme e mesmo depois, quando ele termina: How is this possible?, ou seja, “Como isso é possível?”. Nesse mesmo viés, em uma sequência mais próxima do final, quando Brandon se precipita ainda mais intensamente em sua caçada infernal, provocado pela forma como Sissy, sua irmã, se imiscui em sua vida e perturba-lhe o modo de gozo, mas já prenunciando o advento do pior, poderemos entrever, em um cartaz, as palavras ao mesmo tempo irônicas e, de novo, interpretativas da situação: improving, non stop, ou seja, “aperfeiçoando, sem parar”.

Uma canção, muita precipitação e muita miséria

É oportuno perguntar por que, em um filme marcado por atos intensa e perigosamente precipitados, bem como por uma grande miséria subjetiva de seus personagens, somos tomados, durante uns 4 minutos e meio, por um close do belo rosto de Carrey Mullingan cantando lindamente, mas num ritmo como jamais havia se escutado antes, a canção que Liza Minelli e, algum tempo depois (de modo ainda mais contundente), Frank Sinatra consagraram como uma espécie de “hino” a Nova York. Como se não bastasse essa longa e linda sequência, a letra de New York, New York, talvez novamente mostrando-nos o modo como os escritos também devem ser contado como um elemento a mais de Shame, é integralmente traduzida na legenda em português.

Trata-se de uma canção que evoca uma esperança de pertencimento a uma cidade, o sonho de ser bem sucedido em Nova York porque, quando isso acontece lá, pode se realizar em qualquer outro lugar. Composta por Kander e Elb para a trilha sonora do filme New York, New York, dirigido por Scorsese em 1971, essa canção retorna agora ao filme de Steve McQueen. Através dela e do modo como é entoada em Shame, escutamos a busca de Sissy por um pertencimento a um homem, a seu irmão, a uma família, a Nova York, mas também o quanto que, mesmo já podendo se corporificar como parte dessa cidade e se colocar como o que tal canção apresenta nos termos de king of the hill (“rei do pedaço”), top of the heap (“o que está por cima”), top of the list (“topo da lista”), Brandon, seu irmão, continua sem lugar porque a realização desses ideais ou a significação fálica em jogo nessas expressões não conseguem responder o real em jogo no modo de satisfação que excessivamente o aprisiona na própria e suposta liberdade de gozar.

A forma como New York, New York é inserida em Shame também nos dá acesso a alguns traços de humanidade e subjetividade na miséria que permeia as vidas de Brandon, de Sissy ou mesmo do chefe do primeiro. Escutando sua irmã cantando, uma lágrima verte dos olhos de Brandon que, em seguida, vai se esforçar para não se mostrar tão afetado pelo que escutou e viu. Após cantar, Sissy se senta à mesa com o irmão, o chefe dele e ficamos sabendo que ela não é de Nova York, já morou em Los Angeles (para onde pensa regressar) e que, de fato, vem de New Jersey. Bem mais adiante, quando Brandon ensaia, desajeitadamente, iniciar o relacionamento com uma mulher sem aprisioná-la no seu modo de gozo marcado pela adição sexual, ele lhe revelará que nasceu de fato na Irlanda e, assim, podemos verificar o quanto a busca de pertencimento e de sucesso entoada em New York, New York foi também a sua, embora sua realização não lhe tenha garantido um lugar digno para seu desejo. Por fim, em uma das reduzidas informações que temos sobre o passado de Brandon e Sissy, ela lhe diz que “não são pessoas ruins” – apenas “vieram de um lugar ruim”.

Que lugar é esse, não sabemos e tampouco aqueles que dele vieram se dispõem a revelá-lo. Entretanto, associado à parceria e à angústia que a presença de Sissy evoca em Brandon, verificamos o quanto a adição sexual do irmão, seu isolamento do mundo na prisão do seu gozo, são um modo de se defender do que a irmã, como mulher, lhe corporifica como o que Lacan chamou da impossível relação entre os sexos. Por sua vez, a insistência não menos perigosa e solitária com que Sissy tende a buscar o irmão (ou mesmo outros homens que, como o chefe dele, não deixam de duplicá-lo), sempre recebendo em troca o acolhimento e a rejeição como inevitáveis, é o modo feminino e, como tal, devastador, de ela se defender do impossível da relação sexual.

Um círculo e outra palavra escrita

A precipitação de um acidente parece introduzir uma trégua entre os irmãos e, de modo particular, na caçada acelerada com que Brandon buscava se aprisionar exercendo a liberdade que o capitalismo e a ciência prometem com relação à satisfação sexual. A rua, um dos locais para tal caçada, torna-se o lugar onde ele cai, de joelhos e desesperado, após viver um acontecimento traumático. Em seguida a essa cena e por um brevíssimo espaço de tempo, Steve McQueen faz a tela do cinema escurecer, o que me permite evocar o breve apagamento dessa outra tela, a do computador, espaço tecnológico em que a caçada de Brandon perigosa e, nesse contexto, virtualmente se localizava ao longo do filme. A sequência final de Shame, novamente em um metrô, não deixa de evocar uma que se passa mais no início: lá estão Brandon, com seu rosto focado em close, bem como, com outra cor de cabelo, outro penteado e outra roupa, uma mulher que ele havia procurado seduzir e que havia dele se perdido na multidão da estação de metrô. Tudo parece diferente, mas ao mesmo tempo igual, ainda que a sequência final se interrompa um pouco antes do que acontecia naquela que se encontrava mais no início do filme. Assim, Steve McQueen faz um corte na sequência final que ciclicamente remete-nos à primeira e essa suspensão me parece funcionar como um corte em uma sessão analítica lacaniana. Esse corte se faz ao se detectar a emergência de uma repetição, mas não é necessariamente uma garantia de que a repetição não virá e que, no caso do filme, como em um final feliz, Brandon teria podido, então, se livrar da prisão de seu modo de gozo.

A estratégia para a conquista de alguma liberdade nesse contexto viria, a meu ver, do confronto entre o modo de gozo onde um sujeito se vê aprisionado e uma palavra que Steve McQueen escreve tanto no início quanto no final de seu filme. No início, logo que Brandon sai, solitário e nu, dos lençóis que cobriam-lhe parte do corpo, essa palavra é escrita, letra a letra, na sua cama. No final, é ela também que será escrita quando a tela escurece para indicar-nos, desta vez, que o filme acabou. Essa palavra é o título mesmo do filme e que, ao longo deste, não é pronunciada uma vez sequer. Ela, portanto, no filme, não passa de um título. No Brasil, pareceu-me interessante que esse título sequer foi traduzido, reiterando, pelo menos para os que não falam inglês, a dimensão impronunciável que ela tem para os personagens de Shame, mesmo que eles sejam anglófonos.

Tal confronto que não acontece com Brandon ou mesmo com sua irmã, entre o modo de gozo e a vergonha (shame), é o que Steve McQueen me parece realizar, em ato, com Shame. Ele não apresenta personagens envergonhados por seus modos de satisfação, tampouco os faz claramente se envergonharem ao longo do trajeto que o próprio filme perfaz. Entretanto, esse filme de Steve MacQueen e sua utilização da palavra Shame me evoca o que Lacan havia realizado em 1969-1970 e que pude trabalhar em outro texto (Lacan, [1969-1970]1992), neste mundo tomado pela depreciação e pela falta de vergonha com relação ao significante-mestre, é decisivo localizar, nomear e fazer esse significante aparecer, evidenciando que, na liberdade que as bodas do capitalismo com a ciência consagram ao gozo de cada um, processa-se o aprisionamento a esse senhor que, com a psicanálise freudiana, já podemos nomear como sendo o supereu que, nos termos de New York, New York, neste mundo destituído de referenciais que possam orientar os sujeitos em seus modos de satisfação sexual, também pode tomar a forma de o king of the hill (“rei do pedaço”), o top of the heap (“o que está por cima”), o top of the list (“topo da lista”).

Referências

Lacan, J. [1969-1970]1992), O seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 169, 172, 180, 184. Para meu texto: LAIA, S. Análise e interpretação de uma efusão coletiva: os discursos, a ação lacaniana a partir de maio de 1968 e de suas consequências. Curinga, n. 28, Belo Horizonte, 2009, p. 97-113.

Miller, J.-A. (2012), Conferência a ser publicada em versão impressão pela revista Opção Lacaniana sob o título “O real no século XXI”, mas já disponível, em versão na internet (acesso em 3 de agosto de 2012):
http://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=38&intEdicion=13&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2493&intIdiomaArticulo=9#notas

Woo, K. (2012), Shame on Fassbender. Dazed & confused, february 2012. Acesso disponível por internet em 3 de agosto de 2012:
http://www.dazeddigital.com/artsandculture/article/12601/1/shame-on-michael-fassbender.



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